terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Boas Festas, com amor!

Acordou disposta a preparar uma linda Ceia de Natal para a sua família. Trocou a água do bacalhau que dessalgava desde a tarde anterior, descascou as batatas e as colocou para cozinhar, temperou um grande frango, já que seus filhos não apreciavam o sabor do tradicional peru de Natal. Checou se todas as bebidas estavam na geladeira e só então começou a organizar o café da manhã daquele 24 de dezembro. A mesa estava linda: uma prévia da que seria arrumada à noitinha. Acordou o esposo com beijos doces, acordou as crianças com doces beijos. E após uma rápida higiene matinal, foram todos para o café da manhã.
Então, toda a cena congelou. De repente ela se via movendo-se e falando sozinha, enquanto sua família permanecia inerte: o esposo com a torrada na mão e a mão no ar, próxima da boca, que estava aberta; João com um pedaço de pão afogado na boca, em meio a um grande sorriso, tão grande que forçou os olhos a se fecharem; Pedrinho de cabeça baixa, a olhar para o mingau, como se ainda em dúvida se devia ou não comê-lo, a mão direita em posição de quem coça a cabeça. Após o susto inicial e algumas tentativas que a assegurassem de que tudo estava, realmente, parado (sentiu-se brincando de estátua com seus coleguinhas, ainda na infância, e se lembrou de como era boa essa época...), ela não se desesperou. Ao contrário, sentiu-se grata por poder ter aqueles instantes congelados à sua frente. Sentiu-se especial por isso, como se o Criador estivesse entregando a ela um grande presente de Natal: aquela família linda, que às vezes a desesperava, que em outras a aborrecia, mas que sempre a deixava feliz e completa era o seu presente de Natal e naquele momento estava ali, na sua frente, numa fotografia viva que jamais seria apagada de sua mente. Sentiu-se realmente grata aos céus. Tanto que começou a entoar uma canção de Natal.
Pinheirinhos que alegria!
Lá-lá-lá-lá-lá, lá-lá-lá-lá... responderam as crianças em coro...
Sinos tocam noite e dia – puxou o marido em seu mais perfeito tenor...
Lá-lá-lá-lá-lá, lá-lá-lá-lá! Em coro e alegre a família cantou.
Era Natal naquela casa. Na verdade, era Natal todos os dias, ela pensou. E desejaram-se, felizes e seguros por estarem em família, “Boas festas, com amor!”.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O encontro
E o avião, pau-sa-da-men-te, pousava. Tudo parecia lento demais, cenas se construindo q-u-a-d-r-o-a-q-u-a-d-r-o, as alvas nuvens cedendo espaço a casinhas minúsculas que, pou-co-a-pou-co se avolumam.  A vida ao redor em slow motion, exceto pelo seu afervorado coração. Aquela viagem, tinha certeza, durara muito mais que o previsto, cada hora, cada minuto, cada segundo, tudo lento demais e ele aflito, aflito, a saudade a lhe estrangular o peito, desejo de estar em casa, no seu lar, pisar seu chão, sentir o abraço gostoso da mãe. A mãe...
No portão de desembarque, a mãe segurava junto ao peito um crucifixo. Rezava para que o voo pousasse logo e de lá saísse, finalmente, após tanto tempo de separação e solitude, seu filho querido. Sua partida ela mesma estimulara, claro, excelente possibilidade de estudos, oportunidade única, imperdível e que ela jamais tivera. Chance de ser alguém, de orgulhar a memória do pai, de gozar a vida com qualidade e ser respeitado com um bom lugar ao sol.  Mas a distância foi eternizada pelas dificuldades financeiras e somente agora, quatro anos depois, se veriam, enfim. A cada minuto, olhava ansiosa e aflita para o painel de desembarque. Voo 3734, sim, previsto, confirmado, aeronave no pátio, desembarque iniciado e sai uma pessoa e sai outra, agora um casal, duas senhoras e nada do seu filho.
O filho aguarda em tortura a visão de sua bagagem naquela esteira sem fim. Até que suas malas despontam, rubras como sempre, fitinhas de Nosso Senhor do Bonfim amarradas nas alças. Recolhe-as. Sabe que é o último momento do ritual que há anos aguarda.  
           A mãe avista o filho. O filho avista a mãe. Entre um e outro olhar, a porta automática se fecha mais uma vez. Acelera os passos, a porta se abre, obediente e respeitosa, e ele, finalmente, para à frente da mãe amada. Que abre os braços e com eles, finalmente, envolve o amado filho, amplexo selado pela pureza da cruz. Lágrimas e batidas de coração e recordações de tatos, cheiros, gosto da lágrima do outro, todo prazer do mundo em matar aquela saudade maior que o mundo e que por tanto tempo sufocou os dois. E se abraçam, e se deixam de abraçar, e se olham nos olhos - e se abraçam outra vez e se alisam os rostos e se dizem palavras de amor e amor e amor.
Agora, de fato, o tempo vai en-cur-tan-do até parecer p-a-r-a-r, enquanto aqueles dois corações vão se a-cal-man-do pela segurança que a presença um do outro transmite. A vida ao redor em fast forward. Exceto por aqueles corações em paz.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Harpócrates
Era uma vez um casal triste, que vivia sozinho numa casa grande. A rotina de trabalhos_estudos_vidasocialeintensa sufocava a relação entre os dois. Passavam muito tempo fora de casa, em seus afazeres pessoais e quando retornavam ao lar, ao fim de cada dia, já haviam gastado todas as palavras que podiam. Assim, silenciavam-se um para o outro. Ouvia-se, entre eles, apenas o som da solidão.
Um dia, cansada daquela mudez, a mulher decidiu falar. Era um sábado chuvoso e os dois estavam à mesa, tomando o café da manhã. Ela olhou para o marido e viu que o homem envelhecia. Algumas rugas, o olhar pesado e os cabelos cada vez mais grisalhos lhe diziam isso. Olhou para si e viu que o mesmo acontecia com ela; a trança que lhe caía sobre o ombro direito agrisalhava-se também. Pensou que a velhice seria um bom assunto, mas o que a incomodava mesmo era a falta de palavras entre eles. Pousou a xícara sobre a mesa, abriu a boca.
E nenhuma palavra de lá saiu. Tentava projetar os sons, boca aberta pairando no ar. Silêncio e aflição. Bateu na mesa com as mãos, despertando a atenção e o olhar do marido. O impulso dele foi perguntar o que se passava. Mas nele voz também não havia, embora fizesse esforço para falar. Silêncio e aflição. Silêncio e os dois. Silêncio.  
Foi nesse silêncio que perceberam o tanto de tempo que havia se passado, taciturnamente, entre eles, para eles. Foi nesse silêncio que notaram que as palavras não existiriam mais, por falta de costume ou quem sabe capricho ou castigo de Harpócrates. Foi nesse silêncio desesperado que se olharam com o carinho há muito esquecido. Levantaram-se, abraçaram-se com o furor da saudade, beijaram-se ali e também choraram. Tudo pouco harmonizado, corpos enferrujados de carinho pela distância. Esse silêncio, com seus hiatos e vazios, foi envolvendo aqueles dois que, de repente, se lembraram de como era boa a presença do outro, de como valia a pena terem ficado juntos, de quanto ainda podiam ser felizes. Lembraram-se de que ainda se amavam, de que queriam ficar lado a lado e de que isso era mais importante do que trabalhos_estudos_vidasocialeintensa. Ao se afastarem daqueles muitos abraços e beijos, olharam-se e, finalmente, ambos se disseram amo você.

Do alto dos céus, sentado numa flor de lótus, Harpócrates, o deus-menino, retirara a mão da boca - não precisava mais pedir silêncio. Apenas sorria.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Dia quente   
          A mulher olhava pela janela. Era um dia insosso, como costumava dizer. O sol quente explodia o céu com sua gloriosa cor; o clima era pesado, estava tudo tão seco e quente que dava preguiça pensar em algo, por mais tolo que fosse. Do alto do terceiro andar, por trás de janelas de vidro, a mulher via os transeuntes. Uns caminhavam avidamente, passando vez ou outra a mão pela testa, a fim de se livrar do suor. Outros iam devagar, talvez desanimados pelo mesmo calor, talvez apenas cansados de viver a mesmice de suas vidas. 
          A mulher olhava-os e suspirava. Não se importava muito se seus dias seriam de sol ou chuva. Queria mesmo é redescobrir a alegria de viver, dia a dia, com a pureza das crianças, a ousadia dos adolescentes, a serenidade e a experiência dos que se maturaram na vida. Era apenas esse seu desejo.
          Suspirou outra vez, diminuiu a temperatura de seu ar condicionado e voltou para sua vidinha fria, tão toscamente normal, sem emoção ou calor. Sua existência a angustiava muito mais do que aquele dia quente e seco.

domingo, 10 de novembro de 2013

“Coisas de menina”
Sentia-se diferente há dois dias. Indisposta e triste até. Queixou-se com a mãe.
- Deixa de frescura, Gabriela. Desde quando uma menina de onze anos tem motivos pra se sentir mal? – retrucou a mãe, enquanto se voltava para a máquina de costura, apressando-se para terminar uma encomenda a ser entregue no dia seguinte.
A resposta em nada ajudou. Um pouco antes da novela das oito, Gabriela avisou que ia se deitar. Como já havia voltado da escola e feito as tarefas que lhe cabiam, a mãe não ligou, mesmo notando na filha certo abatimento, uma ausência de postura ao andar, uma palidez curiosa; a isso julgou como sendo apenas “coisas de menina”.
Gabriela só queria repousar. Escovou os dentes, lavou o rosto e preparava-se para urinar quando viu que de si escorria um líquido vermelho escurecido, uma pequena nódoa que manchava a calcinha. O coração disparou. Assustada, a menina não sabia o que fazer.
- Mããããe!
A mãe veio ao encontro da filha e logo percebeu o que acontecia. Por estar nervosa – ainda não estava preparada para um momento como esse! -, conversou em tom muito formal, falando, entre gaguejos, os cuidados e, principalmente, os riscos a que a menina a partir de agora estava sujeita. “Minha filha, minha doce menina, está crescendo, enfim”, pensava a mãe, enquanto procurava um absorvente e explicava à filha como usar. Gabriela ouvia tudo com atenção.
No banho morno recomendado pela mãe, sorriu. Sentia-se mais viva, fluida e fêmea como nunca fora. Uma certeza a inundava: crescia, enfim.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Inverno

Desperta assustado, pulso acelerado, suando em bicas. Um calor intenso lhe percorre o corpo ao mesmo tempo em que se sente fraco, adoecido. Estranha, pois, olhando pela janela, pode ver os muitos flocos de neve caindo suave e lentamente no alvo cenário. É inverno, o rigoroso inverno londrino.
- Será que estou doente? - preocupa-se.
É péssimo ficar doente quando se vive só e distante, amargo preço que se paga pela independência. Tenta se levantar, mas sente tamanho peso sobre a cabeça que se vê forçado a ficar deitado, quase imóvel. Mexe as pernas e sente, com nojo, o suor que invade sua cama, encharcando-a. Precisa sair dali, há tanto que precisa fazer! Fecha os olhos e tenta pensar em algo bom, que o impulsione a se erguer.
Então ele se vê criança, estendendo uma flor para a mãe, na beira da praia, quando ainda viviam no Rio de Janeiro. A mãe inunda a existência do menino com seu sorriso, o mais belo sorriso que ele se recorda já ter visto, arruma seus cachinhos negros desordenados pelo vento, beija-lhe as faces rosadas. A imensidão do mar é pequena diante do amor infinito que a mãe sente por ele; as ondas do mar não o embalam tão bem quanto os braços da mamãe. Ele lhe faz cócegas; ela retribui; ambos correm pela areia da praia. São felizes, e o tempo lhes parece eterno.
Abre os olhos, confortado pela imagem materna. Sorri, pois descobre que não sua, tampouco está deitado em uma cama asquerosamente molhada; antes, encontra-se bem aninhado sob um quente e confortável edredom. Olhando pela janela, pode ver os muitos flocos de neve caindo suave e lentamente no alvo cenário. É inverno, tempo de paz.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

   Tomé
 “No mesmo instante caiu sobre ele névoa e escuridão, e, andando à roda, procurava quem o guiasse pela mão.”
(Atos 13:11 - Bíblia Sagrada)

Sempre duvidou de tudo que não podia compreender. Precisava comprovar o que ouvia, via, sentia. Era um homem bom, mas extremamente desconfiado. Chamava-se Tomé. Arriscava o mínimo, pensava o máximo, inquiria sempre.
Até que, certa vez, andando Tomé por uma rua movimentada, em plena luz do dia, caiu sobre ele névoa e escuridão. Desespero e insegurança abateram o homem. Sem nada enxergar, embora o sol brilhasse a pino, Tomé andava às cegas, procurando quem o guiasse pela mão. Ninguém vinha, porém, em seu auxílio. As pessoas que assistiam a tudo temiam se aproximar, pois não podiam crer no que viam. 
          Assim, engolido pela dúvida alheia, Tomé foi-se perdendo em meio à escuridão que lhe invadiu a alma. E, imerso em trevas, Tomé acreditou, enfim, que estava incompreensivelmente perdido para sempre. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Fio de prata
Sua vida era sem forma e vazia, pensava. Sentia que seu espírito oscilava, inanimado, no ar; sua mente tornava-se um caos de medo e solidão; seu corpo, mero instrumento vegetativo, enfraquecido, falho – jazia inerte sobre a cama de hospital. Por que ainda estava vivo? Por que não chegavam e, simplesmente, desligavam as máquinas que o prendiam à vida? Tinha a impressão de ver, ao longe, nebulosamente, um fio de prata que, saindo de sua cabeça, subia aos céus. Ele não via céus, é verdade, ali, dentro daquele quarto há tanto tempo. Ou será que via? Verdade e mentira, realidade e ilusão – tudo se misturando, um aglomerado cruel e crescente. Razão nenhuma encontrava em si mesmo; quem sabe alhures?
Sabia que podia ter sido feliz – e isso era o que mais o torturava.  Sabia que podia ter se divertido mais, amado mais, ter feito o que queria fazer... e se lembrava da canção que muitas vezes cantara na banda louca na qual tocava guitarra. Drogas, sexo e rock and roll, sonho nebulosamente dourado de uma juventude transviada da qual ele – sim, agora se orgulhava – fizera parte, ainda que muito tempo depois. Fizera. Passado bem pretérito. Porque agora, sua vida era um nada sobre a cama. Ter feito o que queria fazer. Sentiu uma lágrima descer pelo rosto – teve medo de morrer. Seria bom? Suave? Indolor? Muitas dores já sentira; que viesse, então, a que precisava vir. Serenou o parco espírito, esvaziou a mente, imobilizou o corpo. E viu que reflexos do fio de prata bailavam à sua frente, viu asas em sua direção que pareciam ter rostos e sorriam como quem diz: “Fique tranquilo, estamos aqui. Vamos junto com você”.
Sua vida, sem forma e vazia, esvaiu-se num espetáculo belo, prateado, sereno. Fim?

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O Homem, o Mar

O Homem olhou para o Mar. Aconchego, segurança, paz. Aquele mundo azul parecia tão seu, tão completamente seu, que tinha a sensação de que somente ali se sentia seguro. Iam-se os medos, fugiam-se-lhe as teimosias, apagavam-se as neuroses. Bastava ele ali, diante do tão seu Mar para se sentir pleno. Mas ele sabia que nada seria novamente como fora; muita coisa mudara desde que estivera ali pela última vez. O Mar? Permanecia igual; ele, o Homem, é que estava diferente. Mudara-se para a cidade grande; e lá não havia Mar. Casara-se com a Mulher Bela; e achou que seria feliz. Dirigira muitos carros; e num deles rodopiou, uma noite, tanto, tanto, que somente se viu de novo em meio a tubos e faixas, numa cama de hospital. A mulher Bela? Não, ela não estava ali. Tampouco as pernas do Homem. Por instantes, praguejou, flagelou-se, achou que iria enlouquecer. Homem? Sem pernas??
E então, lembrou-se do Mar. Sabia que precisava voltar para Ele - ainda que incompleto, sem metade do corpo e tendo em fragmentos a alma. Precisava voltar para o Mar.
Da calçada, sobre a cadeira de rodas, o Homem olhava o Mar. Mas só aquilo não era o tudo que o Homem desejava do Mar. Sentiu um toque nas costas. Era outro homem, que parecia se importar com sua dor. O Homem estendeu as mãos e o homem compreendeu: tomou-o nos braços e caminhou para o Mar. Os pés do homem traziam ao Homem, novamente, paz. De olhos fechados, conseguia sentir sob os ausentes pés a areia fofa e morna. O homem carregou o Homem no colo até a beira do Mar. E o Homem pediu: “Pode me deixar. Obrigado”. O homem aquiesceu, deixando o outro ali, largado no Mar. E foi tanta a emoção e tanta a alegria e a paz que inundaram o peito do Homem que ele chorou.
Quem olhava da calçada, via apenas um cotoco de homem, sozinho, à beira do mar. Mas o Homem, que ao olhar o Mar olhava também para dentro de si, via-se fundido àquele mundo tão seu. Homem e Mar, lágrimas e ondas. Irmandade, mistério, amor.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

O menino e seus mestres

O menino segurou firme a mão da mãe e ambos subiram os três degraus que separavam a rua da porta da Escola. Era lindo aquele prédio... Muitos desenhos de bichinhos, plantas por todos os lados, flores multicores e mensageiros dos ventos espalhados pelo jardim. Chegou a pensar que sonhava, mas sabia que, se em sonho, seu coração não bateria tão alto como agora. Sua mãe acariciou-lhe a mãozinha, percebendo o nervosismo. Abaixou-se à altura do menino, beijou-lhe a testa com carinho e disse:
- Meu anjo, este será o melhor dia da sua vida.
Então, em meio a muitas outras crianças e mães, ele a viu. Era alta, de cabelos negros, longos e encaracolados. Usava grandes óculos de aros vermelhos, no meio dos quais seus olhos castanhos brilhavam. Tinha um sorriso nos lábios que parecia com o de sua mãe. Abriu os braços ao ver o menino:
- Então você chegou! Estava mesmo te esperando!
E enquanto dizia, abaixava-se à altura do menino (à semelhança, outra vez, da mãe), para recebê-lo com um abraço. O menino foi deixando de lado o medo e se sentindo acolhido e querido. Sabia que ficaria bem. Despediu-se da mãe, largando-lhe, finalmente a mão.
Era o primeiro dos muitos dias que viveria, feliz e seguro, na companhia dela. Tânia, Luísa, Fernanda, Cristina; Fabiano, Sérgio, Simone, Anderson; Patrícia, Selma, Valdilene, Luiz. Muitos nomes seus professores tiveram, ao longo de sua vida, cada um lhe deixando muito de saber, muito de viver, muito de amar. O menino crescia e seu amor por tantos mestres que lhe ampliavam a vida somente aumentava. Colhia suas histórias, seus ensinamentos, a doação do que eram e sabiam como se colhe o néctar de uma flor: com paciência e ternura. Aproveitava a alegria que era seguir ao lado deles – professores doutores em alegria, em simpatia, em altruísmo e emoção. Divertia-se com as músicas que traziam, emocionava-se com os filmes que passavam, refletia com tantas de suas palavras e textos. Eles faziam o menino descobrir que ele também muito sabia; e isso aumentava o brilho do olhar, a emoção e a surpresa ao conhecer o que ainda não sabia, mas que, suavemente, se descortinava ante seus olhos pelas doces mãos de seus mestres.
Quando cresceu ao ponto de decidir o que queria fazer da vida, não teve dúvidas: escolheu ser professor. Porque todo o amor (e mais, muito mais) que recebera de seus mestres, ao longo da vida, deveria ser distribuído a muitos outros meninos. Inseguros e grudados nas mãos de suas mães até descobrirem tanta magia e beleza (e mais, muito mais) que só pode existir num professor.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Tempestade de amor

O som ensurdecedor de um trovão e, de repente, a ausência de luz em toda a casa. A menina apertou Laurinha contra o peito; ambas tremiam como varas verdes.
- Mamãe logo voltará, disse a garota para a boneca preferida, acariciando-lhe os cabelos.
Mas não tinha certeza se o que dizia era verdade. O que sabia ser verdade era que a chuva forte caía lá fora, plena de luzes e sons; era que a luz faltara há segundos, deixando a menina e a boneca num breu de dar dó; era que a mãe poderia se atrasar, justo hoje, pois dependia de transporte público, que não caminhava bem em dias de tempestade. A menina tinha apenas dez anos, mas sabia de muita coisa. E também sentia muita coisa. Naquele momento, por exemplo, sentia medo e uma dor no peito que só aumentava a cada raio que riscava o céu. Queria tanto o colo da mãe!
Então ouviu o telefone tocar. Junto com o toque, um arrepio no peito, um dissipar da tristeza, um brotar de sorriso em seu rosto angelical.
- É a mamãe! É a mamãe!
E correu para a sala, louca para pegar o telefone. Magicamente, a escuridão da sala se desfez com a luz de um relâmpago; iluminado o aparelho, a menina, ofegante, segurou o gancho:
- Mamãe!!!
Do outro lado, a mãe chamou-a de “meu amor” e cantarolou uma antiga canção de ninar. O coração da menina foi acalmando, como água do mar depois da tempestade. Ainda havia lágrimas em seu rosto, mas daquelas que significam “eu sabia que alguém olhava por mim”. Ela apertou mais uma vez Laurinha contra o peito e fez um coro com a voz da mãe. Cada nota cantada, cada murmurar melódico era carregado de tanto amor e de tanto carinho, que a pequena deixou de temer.
A menina, agora, sabia de mais uma coisa: amor de mãe também faz tempestade passar.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Para sempre
Seguiam aquele caminho há tanto tempo juntos que nem sequer sabiam como seria soltar a mão um do outro. Tampouco queriam isso. Alimentavam-se do “estou aqui”. Alegravam-se pelo “vou contigo”. Emocionavam-se com o “eu te ajudo”. Anos a fio fora assim. E cada “eu te amo”, “estamos juntos”, “quero-te ao meu lado”, “que bom ter você aqui”, “também amo você” renovava a cada dia a alegria de ser um a parte do outro, outro a continuação do um.
Um dia, porém, chegou o fim do caminho para um deles. E as mãos precisaram se desunir. A dor ante a possibilidade de separação daquelas mãos umbilicalmente imbricadas há tantos anos era demais para ambos. Um fechou os olhos, precisava ir. Outro os abriu para ver melhor. E se assustou, docemente. Na palma daquelas mãos disjuntas, havia nascido uma flor alva, que reluzia, brilhante, e trazia uma tepidez envolvente. Calmaria após os balanços do mar. Um abriu os olhos: sabia que era a última vez. Outro retribui o olhar com um sorriso. Ambos olharam suas mãos. Era assim, então. As mãos em flor não precisavam mais se tocar. Suas raízes estariam juntas para sempre.


quarta-feira, 18 de setembro de 2013


Escrevo.
Para renovar o sentido da existência e atrapalhar a morbidez das ideias.
Para aplicar inovações ao básico e retirar excessos de abundâncias.
Para juntar os cacos, pedacinhos da vida que se vão perdendo a cada despertar.
Para conectar pontas perdidas de. 
Desembaraçar fios dos. 
Arrumar pensamentos em. 
Distribuir sorrisos ou lágrimas por.

Escrevo para partear a gravidez de letras e palavras que se me vão transbordando
                      e não cabem em peneiras.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Mudanças
O tempo mudou de repente. Ou eu mudei? Olho pela janela e vejo coisas que antes não estavam lá fora: o mato alto, as flores murchas, a água da piscina que vai se esverdeando a cada piscada que dou. Mudei? 
Volto o olhar para a sala de estar. Nela estou, estático, apático. Recordando-me apenas dos tempos de êxtase: casa cheia, amigos em demasia, sorriso, festa, alegria. Mudei?
Tenho apenas o desejo de dormir. Sem o risco de acordar, de repente, e me dar conta do tanto de mudanças pelas quais passei como um mero transeunte na estrada. Do tanto de mudanças que me perpassaram como a uma presa abatida em caça. Do tanto de mudanças que. Mudei?
A vida precisa ser intensamente vivida. Porque será, sem pena, vividamente passada.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O dia em que vi Deus

          Era apenas mais uma viagem de avião. Voltava de uma visita a amigos, noite passada em claro a discutir temáticas metafísicas, o homem no centro de todas as coisas, transformando-se na essência de seu próprio existir. Estava sonolento, cansado de tantas gnoses, ateísmos (psicoses?). Crianças abandonadas na lixeira. Moça indefesa estuprada por bando. Genocídios. Fatricídios. Pedofilias. Rejeição. Preconceito. Era incapaz de pensar nas coisas da vida sem culpabilizar Deus pelas mazelas e injustiças terrenas.
Até que olhei pela janela.
            Eis que vi o céu tomado por um cinza azulado, invadido pela branquidão das nuvens. Num repente, tudo se pintou, ao longe, matiz de cores que ia do laranja ao vermelho-paixão, num espetáculo que emocionaria ao mais descrente dos homens. Pensei: meu deus, alguém fez isso, não há como não ter sido assim. O mesmo que fez as guerras e dores e dissabores?
Foi quando vi o rosto Divino surgindo dentre as nuvens, em meio aquele espetáculo multicor. Era imenso, mas sereno; olhava-me com candura. Em seu olhar, respostas. Fitamo-nos, apenas, por alguns instantes. Riqueza de um momento em que tudo o mais – amigos, passageiros, discussões – parecia fútil, tolo, dispensável. Sons inauditos me invadindo ouvidos, peito, mente. No coração, um dilúvio de paz, lavando incertezas e me firmando os passos em lugar seguro. Rendi-me.
Eu vi Deus. E essa visão me completou por toda uma existência.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

É pra ver se você volta
Ao som de Mentiras, de Adriana Calcanhoto

Mentiras. Enredara-se aquela relação em mentiras tantas que chegara ao fim. Ele apenas se foi. Não era de seu feitio discutir. Tampouco insistir. Foi-se. Ela, porém, protestou, como era – agora sim - de seu feitio.
Disse que ia atormentá-lo se não voltasse.
Que ligaria para ele várias vezes por vários dias.
Que ele nunca mais teria paz.
Que contaria para suas amigas sobre o canalha que ele era.
Que estouraria o cartão adicional, além de sacar cada centavo da conta conjunta que haviam aberto quando decidiram juntar dinheiro para se casar.
Que faria uma carta anônima para a mãe dele, beata idolatrada, com obscenidades que ele jamais ousaria dizer. Seria um escândalo!
Que encheria a cara e passaria noites ao relento. E que quando alguém se aproximasse para perguntar se queria ajuda, ela diria que só estava assim por causa do amor que se foi. E daria ao bom samaritano o telefone dele, o canalha que a abandonara.
Que tentaria suicídio e deixaria, ao final do bilhete, o nome dele, a fim de que fosse o culpado por sua morte.
Tudo pra ver se ele voltava.
Mas ele não voltou. Havia mentiras demais.
Ela, percebendo a derrota, decidiu dizer apenas a verdade. Quando viu que não conseguia, disse a si mesma que daria um passeio pela Ponte Rio-Niterói. E lançou-se ao mar.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Tempo

Pousou a mão direita, lentamente, sobre a esquerda. Olhou-as. Era difícil ver o quanto envelhecera. Olhou-as com dor e pesar, com lembranças de uma vida que fora vivida há tanto tempo, meu Deus, que nem parecia mais ser a sua.
Respirou fundo. E uma lágrima deslizou, insana, por aquela sua velha face, tão enrugada quanto as mãos que ainda observava. Ali, quieta, a espiar o tempo que lhe deixara tantas marcas – ou será que espiava apenas as tantas marcas deixadas pelo tempo? – tentou, mas não conseguiu impedir a lembrança de uma canção que ouvira quando jovem, e que agora sabia, sempre trouxera uma doce verdade: O tempo não para.

Ergueu-se da poltrona de forro desbotado, tomou uma taça e encheu-a de vinho. Sozinha na sala, abriu um sorriso amarfanhado e ergueu a taça, trêmula, num derradeiro brinde ao Tempo.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Sonho turquesa
Mergulhou, enfim. Não no mar: no ar. E era tanta a imensidão azul que lhe invadia os poros, lhe atiçava os pelos e lhe acalmava a alma que tudo parecia passar à sua frente em câmera lenta. Sonho turquesa de infinita paz.
Ali, no ar, flutuava docemente enquanto se esquecia de que há problemas na vida.
Ali, no ar, dançava ao som do vento que a conduzia, na certeza de um momento divinamente especial.
Ali, no ar, perdia medos e segredos; tornava-se feliz. Libertamente feliz.
Lançava-se ao vento, sem medos. Espaço sem coação ou obrigações, pleno dos viveres bonitos que tanto ansiava que fossem reais. Seus e reais. Sorria e era feliz naqueles instantes de flutuação que se estendiam como uma toda vida. Gozava cada segundo. Sorvia. Nutria-se. Carpe diem, carpe diem.
Agarrava-se ao sonho azul. Porque sabia que em breve acordaria numa manhã cinzenta,
cujas nuvens densas invadiriam com pesar

a palidez de sua vida.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Desaniversário

Encheu todas as bexigas coloridas, deixando-as dispostas sobre o sofá. Recebeu o bolo e os salgados que havia encomendado, fazendo questão de pagar tudo em dinheiro. Checou a temperatura dos refrigerantes que havia colocado para gelar; estavam no ponto. Forrou a mesa com a toalha cor de rosa, sobre a qual colocou outra, de renda. No centro da mesa, pôs o bolo. Ao redor dele, talheres, pratinhos, espátula, guardanapos. Trouxe as taças para a mesa, assim como a bandeja com salgados, quentinhos, fresquinhos.
Sentou-se e desejou que houvesse convidados. Que houvesse reais motivos de comemoração. Que alguém se importasse com seu trigésimo quarto aniversário. Que não estivesse sozinha. Que houvesse uma linda festa – a sua linda festa.
Aniversário: dia em que se completa um ou mais anos de idade. Aniversário: relativo à comemoração do dia do aniversário. Aniversário: alegria, festa, partilha, comemoração. Bexigas coloridas. Bolo e salgados. Refrigerantes gelados. Mesa arrumada.
Aniversário. Alegria. Festa. Partilha. Comemoração. Então hoje era apenas seu desaniversário. Não como os desaniversários de Alice no País das Maravilhas. Era seu desaniversário porque lhe faltava alegria, festa, partilha, comemoração – embora lhe sobrassem anos, danos, canos. Era seu desaniversário porque sua vida esvaía, bem como seu prazer de existir e ser, justo no dia em que deveria haver alegria, festa, partilha e comemoração. E enquanto se dava conta disso, cobria-lhe um temor - mais que isso: um terror - de que sua vida estivesse sendo vivida toda ao contrário, desde sempre. De que sua alegria profunda não passasse de um esgarçado sorriso. De que seus sonhos dourados não fossem mais do que ilusões incolores.
Desaniversariava e isso lhe causava dor.

E, doente que estava, foi desaniversariando, desaniversariando, enquanto olhava para o bolo, para a fumaça que saía dos salgadinhos, para os objetos dispostos sobre a mesa, para as gotículas que brotavam das garrafas de refrigerante, para a renda sobre a toalha cor de rosa... até desaparecer em meio às bexigas multicores.

sábado, 20 de abril de 2013


Desenho da infância

As duas crianças brincavam de boneca, contentes porque estavam na companhia uma da outra. Divertiam-se a valer. Não havia preconceitos ou rumor de maldade. Não havia julgamentos ou classificações. Nenhuma segmentação ou estereótipo reinava naquela brincadeira. Somente a infância se desenhando com lápis coloridos e pedacinhos de giz de cera, num lindo quadro de pureza e sinceridade. Eram felizes: ela, ele e as Barbies.
Mas chegou a mãe dele, juntamente com a mãe dela. A primeira enfureceu-se:
- Garoto, ficou louco? Menino não brinca de boneca!
E tirou com aspereza da mão do filho a Barbie tão bonita, enquanto o levantava do tapete emborrachado todo enfeitado com as letras do alfabeto. Separou-o bruscamente da companhia da amiga, a quem devolveu a boneca.
A mãe dela abaixou-se à altura da menina em uma contenção assustada, acariciando a Barbie como num afeto à filha.
As duas crianças se olharam. E havia perguntas e tristeza nesse olhar.
As duas mães se despediram com um sorriso. E havia tensão e julgamentos nesse sorrir.
Enquanto a cena acontecia, um sutil borrão ganhava forma, manchando a pureza daquele desenho da infância.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Pai


O homem ergueu a mão para ele, mão pesada, calejada, quase rústica. Sua mão grossa tinha o peso de uma eternidade e certamente deixaria marcas na pele, na mente, na alma. Uma parte sua dizia “não bata”, a outra gritava “ele merece”. Escutou esta, ignorando aquela.
Desceu a mão sobre o menino com todo o furor, mágoa e peso que ela pudesse concentrar.
Ouviu-se um barulho seco, seguido de segundos de silêncio. 
Até que o filho explodiu em choros, balbuciando apenas, com temor, “pai!”

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013


Des...encontros

Era noite e estava frio. Eles seguiam em direções opostas.
Para ele, o fim de tudo, afinal. Para ela, lembranças e dor no peito.
Ele pensava no tempo perdido ao lado dela. Ela lamentava não estarem abraçadinhos naquela noite fria.
Ele tentava esquecer, cantarolando uma canção, embora a canção lembrasse um passeio adorável que fizeram. Ela insistia em recordar o tudo de bom que viveram juntos.
Ele se lembrou de que deixara sua carteira com ela; mania que cultivava desde que iniciaram o namoro, porque reclamava que a carteira no bolso o incomodava demais, melhor deixar na bolsa dela. Ela apertou a bolsa contra o peito e sentiu o volume que a fez sorrir: sem a carteira, ele iria voltar. Ele iria voltar!
A contragosto, ele deu meia volta e pôs-se a apertar o passo, para alcançá-la logo. Ela, cheia de esperanças, se virou e aguardou. 
Ele a viu de longe e sorriu meio sem querer da mania que a via reproduzir mais uma vez: passar os cabelos para trás da orelha três vezes seguidas... Sinal de que ela estava nervosa. Ela sentia o coração bater mais forte à medida que notara o vulto dele se aproximar.
Esqueci minha carteira, ele disse, sem coragem de olhá-la nos olhos. Percebi agora. E fiquei feliz porque sabia que você voltaria para pegar... Ela respondeu baixinho, quase um sussurro frente ao peito dele, seus olhos buscando encontrar os dele em sua direção. Estavam tão pertinho, corpos colados. Ela reclinou a cabeça em seu peito. Assim, sem pensar na separação recente. Só para sentir mais uma vez sua respiração. Ele tremeu ao receber a pressão suave do corpo dela. Fechou os olhos sentindo o cheiro delicado daqueles cabelos ondulados que ele tanto admirava. Lembraram-se de como era bom estarem lado a lado. E sentiram-se aquecidos naquela noite fria.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Libertas quae sera tamen


Preguiçosa e indisposta naquela tarde chuvosa, a mulher recolheu-se ao quarto. Trazia na mão uma xícara quente de chá de boldo - que ela, amaríssima, tomava sem adoçar -, mas mantinha o coração gelado. Todo o rancor do mundo parecia guardado naquele peito e tudo parecia vir à tona sempre que se desenhavam tardes chuvosas. Inveja, despeito, ira. Nojo, vergonha, temor. Desprezo. Egoísmo. Frieza. Dor. Havia um pouco de tudo - e tudo de sobra. Remoía facilmente o que de pior a vida lhe dera, com a mesma rapidez que se obrigava a esquecer tudo o que recebia de bom...
Recostou a cabeça à vidraça da janela, olhando para o nada chuvoso, enquanto tomava seu chá. Sentia-se cansada de tudo, da dor em que vivia, de não ter ninguém - porque ela mesma a todos fazia questão de afastar. Teve o desejo de que tudo fosse diferente, que reaprendesse a sorrir, que sentisse a alma leve. Outra vez ainda.
Ocorreu-lhe uma ideia, um fiasco de luz e paz que invadiu sua mente como um piscar de olhos. Sem pensar, atipicamente, pôs-se a realizá-la. Depositou a xícara rapidamente sobre a cômoda, e nem se chateou por haver derrubado gotas de chá sobre a madeira religiosamente bem acabada. Caminhava com urgência em direção à porta (um breve sorriso lhe pintava o rosto), porta que também era de vidro, como a janela. Parou ao se ver refletida, misturando-se às gotas da chuva que caía. Era bela e parecia menos velha do que sempre se achava. Sorriu (meu Deus, ela sorriu!) enquanto descalçava os pés das meias velhas e frias. Porta aberta, barreiras vencidas, lançou-se sob a chuva que caía, gostosa e grossa, lavando-lhe o corpo, inundando-lhe a alma, trazendo o que, se ela ainda se lembrava, costumavam chamar de paz.
Liberdade ainda que tarde, pensou, feliz e rodopiante, qual criança ainda pura, ainda sem manchas, ainda feliz. Era leve, era livre, era ela - e viu que tudo isso era muito bom.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Via-crúcis

 
     Caminhava apressadamente, mas se deteve alguns instantes na porta da igreja. Tempo suficiente para de novo sentir-se em dúvida quanto a entrar ou não. Sabia, porém, que precisava entrar. Seria bom, iria lhe fazer bem. Além do mais, que mal poderia alcançá-lo ali? Era uma sexta-feira, pouco depois do horário do almoço, quando as pessoas não tinham tempo de parar porque precisavam voltar ao trabalho. A praça estava cheia de transeuntes, mas a igreja estaria praticamente vazia.
     Como não tinha muito tempo, decidiu entrar, e seus passos tornaram-se lentos, como se tomados por um profundo respeito. Tira a sandália dos teus pés, pensou ter ouvido, e apressadamente descalçou os tênis surrados. Seu coração acelerado forçava a cabeça a girar, contemplando a beleza daquele recinto. Teto, paredes, vidraças, santos. Cada detalhe para o qual olhava parecia assegurar-lhe de que aquele era o lugar onde ele deveria estar. Aproximou-se de um genuflexório e reverentemente se ajoelhou. Fronte e mãos abrigadas sobre o peito que agora serenava e se entregava à paz, silenciosamente rezou.
     Não se sabe quanto tempo ficou ali. Pela serenidade que sentia, pela paz que reinava em seu coração, devia ter sido a tarde inteira. Mas sabia que havia um caminho que precisava seguir, gostasse ou não e, levantando-se, se benzeu, agradecendo ao Divino, ao mesmo tempo em que lhe pedia perdão.
     Se possível, passa de mim este cálice, lembrou-se. Mas sabia que não era. Ali dentro, nenhum mal poderia alcançá-lo.
     Mas, à porta do templo, três policiais o aguardavam.