quarta-feira, 24 de outubro de 2012

OPOSTOS
Menina namoradeira, sorriso sempre de orelha a orelha. Saia rodada, deixando à mostra as pernas roliças. Batom vermelho nos lábios, perfume atrás da orelha. Olha-se no espelho e se admira.
Menino tímido, resolve se dedicar ao estudo. Pouco fala, pouco olha nos olhos do outro. Sente vergonha, medo, desgosto. Vontade de ser o que - sabe bem em seu íntimo - nunca será.
Meus cabelos estão péssimos, encontra um desaforo. Pega escova, creme de pentear, pega a cadeira e põe-se a sentar. Cuidado para não amarrotar a saia rodada. Foco no espelho. Penteia que penteia, enrola nos dedos: encacheia...
Pega o violão e se tranca no quarto. Traz o caderno, pega o lápis também. Sozinho, com a música, se sente grande. Compõe mais uma canção – que vem linda e fluidamente – para a menina que um dia conquistará. Quem ela vai ser? Vai me amar??
Assim está bem melhor! Mas o sorriso foge logo. Ajeita-se e se enfeita, mas não a olham olhos especiais. Todos lascivos, fúteis demais. Também eu assim sou?
A primeira corda do violão arrebenta. Pausa na canção e na vida. Silêncio. Barulho só do pensar...
Seu maior desejo era que a alegria que esbanjava em trejeitos sensuais fosse puramente devotada ao menino de seus sonhos.
Seu maior desejo era encontrar a menina de seus sonhos. Com ela falaria e nos olhos olharia. Pra ela cantaria todos os dias uma canção feita no café da manhã.
Sonhava.
Sonhava.

domingo, 21 de outubro de 2012

Aquela chuva...
Arrumou-se toda, aquela noite. Objetivo? Arrasar muito. Vestido perfeito, saltos magníficos (num corpo como aquele qualquer peça ganharia o status de perfeição). Cabelos escovados, jogados para o lado. Maquiagem carregada, mas sem perder a elegância. Bolsa com tudo o de que precisava.
Saiu de casa. O barzinho era bem perto de onde ela morava, então decidiu ir a pé. Mas começou, subitamente, a chover. Pingos grossos, ritmados numa sonoplastia de raios, relâmpagos, trovões. Meu Deus, e minha produção? Começou a correr, na tentativa de fugir da chuva. Besteira. Conseguiu apenas enfiar o salto num vão entre os paralelepípedos, danificando-o. Esse sapato era novo! Mais chuva, mais chuva, corre que corre e, enfim, alcança a calçada do bar. Aperta-se entre outros clientes e entra. Olha-se no espelho da recepção.
Arrumou-se toda, aquela noite. Desarrumou-a toda, aquela chuva.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Passadeira
Passava roupas por ofício. Não por vontade ou opção. Necessidade aliada à habilidade. Lucro suado pra garantir felicidade. O mínimo, verdade. Cada dia novas roupas. Pequenos amontoados que não eram seus. Mas que - com fé, suor e muita labuta - lhe apontavam caminhos para algo que dela, quem sabe, seria. Gostava do que fazia e envolvia-se com os feitos. Sorria enquanto o ferro aquecia.
E cantava para passar o tempo. O veludo de sua voz fazia as vezes das borrifadas de água: alinhava, amaciava, afofava cada peça. As pilhas de roupas amarfanhadas cedendo lugar ao dobrado, liso, esticado. Depois, cada solfejo parecia vivificar as roupas, conduzindo-as aos cabides. Sincronia na sua mais perfeita essência. Sorria enquanto a tudo assistia.
Havia doçura e magia naquela passadeira.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Todos os dias
Uma homenagem a todos nós, professores, que corremos, nos cansamos, às vezes pensamos que vamos enlouquecer, sofremos vendo o tempo passar mais do que deveria. Mas, quando perguntados se queremos outra vida, não titubeamos em responder que não. Porque é exatamente assim que desejamos que tudo seja. Parabéns!
Todos os dias ela acordava às cinco e se deitava apenas após às onze da noite. Passava o dia todo fora de casa, todos os dias. Ainda não conseguira comprar um carro, então corria de um lugar para o outro, ora utilizando ônibus, ora utilizando metrô. Corria o dia todo, todos os dias. Cada vez que chegava a um lugar, alegrava-se e alegrava. Deixava sonhos por onde passava, criava amigos por onde andava. Aprendera, há tempos, que com todos se pode aprender, especialmente se a alma não é pequena. Uma bolsa gigantesca e um sorriso imenso eram suas marcas registradas. Ah, e daquela bolsa gigantesca, sempre saíam mais sorrisos, cócegas, alegria. E também sabedoria, informações, dicas e surpresinhas. Da bolsa imensa saía poesia, continhas, geografia; tinha um pouco de gramática, matemática, biologia. Sua bolsa mais parecia uma cartola e ela, a maga-fada. Sorria, sempre sorria. Fazia isso o dia todo, todos os dias.
Quem a visse assim, todos os dias, numa correria louca, num frisson desesperado, poderia até pensar “Puxa, que moça infeliz!”. Mas se se aproximasse um pouco e deixasse de apenas a observar, veria um certo sorriso constante, uns braços sempre abertos, um olhar vívido e envolvente, uma satisfação sincera e grata por tudo aquilo tão agitado e que transpirava tanta serenidade. Quem se aproximasse ia ter a certeza de que aquilo só podia representar a felicidade intensa daquela moça, que de infeliz não tinha nada. Na verdade, ela sentia-se realizada e completa, todos os dias, a despeito da correria. A correria e a agitação diária, aliás, a alimentavam e davam força para ir além. E, ao fim de cada dia, podia agradecer a Deus por tudo que era e havia vivido, mais uma vez, como todos os dias. Era exatamente assim que ela gostaria que fosse.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Felicidade
Seus cabelos encaracolados balançavam-se ao Vento. Mas não era só isso. O Vento também lhe dizia segredos ao ouvido. Ela, criança que era, puramente inocente e feliz, sorria, encantada com aquele dialeto que apenas eles entendiam. Ora segredava-lhe uma canção. Ora uma historinha sobre lugares que só o Vento conhecia. Ora apenas uma frase engraçada.
A criança parou no meio da ponte que atravessava, abriu os bracinhos, erguendo-os aos céus. Arregalou os olhos, com esforço, para fitar o Sol brilhante, enquanto ouvia do Vento que aquele calor todo era um excesso de um ser que queria, a todo custo, mostrar-se superior aos demais. Apesar disso, era o Sr. Sol uma boa figura. Ela sorria e girava e dançava a música do Vento, olhando para o Sol com alegria. Era feliz ali, ouvindo o Vento, adorando o Sol, tendo sob si um lago brilhante. Era feliz e isso bastava.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A primeira vez

Sentia-se culpado pelo que fizera e buscava, desesperado, formas de se justificar. O tempo. Suas necessidades. A falta de dinheiro. O egoísmo dela. A crise mundial. Tudo servia de escora para sua alma fútil se apoiar. Fato era que se sentia culpado, triste, certo apenas de que, mais uma vez, agira de forma errada. Estava diante do espelho, com as mãos apoiadas sobre a pia e a cabeça baixa. Não conseguia erguê-la e olhar-se. Abriu a bica para lavar as mãos. Lavou também sua cara, horrenda e patética. Olhos fechados, puxou a toalha ao lado para secar-se. E então, num deslize, olhou-se. Levou um susto ao contemplar-se. Seu aspecto era de alguém não apenas culpado, mas cansado, entediado, infeliz. O pior de tudo, porém, não era assustar-se ao constatar seu estado; ele sabia que precisava dela. Que sem ela não vivia bem. Que dependia de seu deboche, seus carinhos, até de seu egoísmo. Que não sabia sorrir se não fosse para ela. Que não conseguia dormir bem se não fosse ao lado dela. Ela era seus sonhos, sua alegria, seus motivos. Ela era todas as suas razões de ser e existir.
Não sabia por que agira como agiu. Sabia apenas que sentir a presença da ausência dela era demais, não conseguia a isso suportar. Colocou a toalha no lugar. Encarou-se corajosamente. Aprumou-se.
Tudo o que precisava era dela. Então telefonou para ela, como se fosse a primeira vez.