sábado, 6 de setembro de 2014




Oca. Seca. Chão.

Olho-me no espelho e só vejo sombras esparsas da mulher que um dia fui. Quase não me reconheço; é preciso esforço e coragem para buscar - no fundo dos olhos, na respiração agora lenta, nos lábios que se afinam – a essência que, creio, ainda sou. Os anos passaram e sobre eles o tempo se avolumou. Transmutei-me em algo que não reconheço eu. Sou oca, sou seca, sou chão. A vitalidade passou, assim como o primeiro amor e o sonho de um dia mudar o mundo. Sou oca, sou seca, sou chão. A paixão pela vida se esvaiu, bem como a crença no humano. Sou oca. Sou seca. Sou chão. Chão seco e oco que se abre sob mim mesma e nele afundo. Chão seco e oco que me descobre somente para então, pe-no-sa-men-te, me recobrir. Oca. Chão. Seca. Resto de uma mulher que um dia fui. Hoje, não mais. Chão. Seca. Oca. As sombras esparsas que vejo no espelho à minha frente confirmam isso. Penso, sobressaltada, se ainda vivo, se naquela mulher oca, seca e chão à minha frente ainda haverá o fôlego de vida. Apesar da infertilidade que a/me invade por completo. Apesar da sequidão que a/me abate a alma. Apesar do chão que sou e que se me afunda sob mim. Apesar da mulher-eu que vejo no espelho.

Abro o armário. De lá retiro um lençol branco. Cubro o espelho com o lençol branco e eis o fantasma diante de mim. Por sobre o lençol branco, plenamente visível, uma sombra esparsa, desdentada, plena de rugas – tão oca, tão seca, tão chão - me sorri tristemente.                                                             

domingo, 29 de junho de 2014

Braços abertos

     O trenzinho chegou ao seu destino, e os passageiros começaram a descer, câmeras fotográficas e sorrisos expostos em profusão. Sotaques distintos e gargalhadas gostosas invadiam o ambiente e se amplificavam mais que a Garota de Ipanema, que saudava a todos, dando-lhes as boas-vindas. O sol a pino iluminava rostos, aquecia mentes e, de quebra, ainda benzia a imensidão de visitantes.
     A mulher também desceu, embora não estivesse à procura de um ponto turístico ou momentos de distração. Tampouco desejava tirar a famosa fotografia aos pés daquele que, diziam, abençoava a cidade. Não a inspirara a viagem agradável, com a paisagem cheia de atrativos naturais; não a inspirara estar num lugar famoso no Brasil e no mundo. Precisava apenas vê-Lo. Precisava encontrar a paz. Casa arrumada, lençóis limpos, mesa pronta, sabe? Um pouco da típica e simples harmonia que há muito não reconhecia.
     Em seus desejos mais secretos, cada degrau que subia representava uma tristeza que deixava para trás. Apesar do tormento interior, ela subia cheia de fé.
     Até que, em meio a raios de sol e uma luminosidade que, de tão perfeita, não podia ser apenas natural, a mulher O viu. Aprumou-se como pode, enquanto se sentia invadida por uma sensação doce, de leveza, que, se ela bem se lembrava, poderia ser chamada de paz. Grandioso, imponente, magnífico: ei-lo à sua frente, os braços abertos sobre a Guanabara. Sentiu-se acolhida, envolvida pelos imensos braços. Havia uma multidão, mas a mulher se sentia única e tinha a convicção de que o olhar Dele se dirigia apenas a ela, pequena e frágil ela. Há tempos não se sentia tão acolhida. Há tempos não sentia o gosto de uma harmoniosa paz. Prostrou-se. Em meio a câmeras violentas, em meio a turistas buscando o melhor ângulo, em meio a crianças correndo e gritando, prostrou-se. Não importava quem estava a seu lado. Ela estava ali, Ele estava ali. Sabia que tudo, enfim, ficaria bem.

sexta-feira, 30 de maio de 2014




Um
       Eram dois, sempre o foram; porém feitos para serem um. Não sabiam disso, no entanto. Então, seguiam como dois, distintos e irreconhecíveis.
      Um dia, numa dessas esquinas que a vida, faceira e inquieta, insiste em colocar à nossa frente, encontraram-se.
       E eis que o mistério da unicidade se concretizou, envolvendo-os numa assustadora percepção que instantaneamente os acometeu: eram incompletos, existentes pela metade, e tudo o que os tornaria plenos estava bem ali, naquele outro incompleto à sua frente, espelho par que o mirava.
        Deram-se as mãos e miraram-se profundamente. Os dois corações ritmados e completos. As duas mentes plenas, finalmente. Respiração e emoção, alegria e pensamento, sorrisos, vida, expectativas, tudo fundido num só. Estavam, enfim, prontos para se tornarem aquilo para o que foram criados: um. Apenas um.

domingo, 25 de maio de 2014




                                                          Desejos
        Sim, amava-o sobre todas as coisas e tinha medo de perdê-lo.
        Um dia, ele pediu:
        - Pode dançar para mim?
        Feliz por aquele pedido que, para ela, significava desejo e aceitação, dançou, ainda que fosse pequena, sem graça e desengonçada.
        Ele apenas ria; ela se sentia feliz.
        Outro dia ele disse:
        - Você seria mais bela sem os cabelos a lhe caírem nos olhos.
       Ela, feliz pela demonstrada preocupação, rapou logo todo fio de cabelo de sua cabeça. Agora, tinha livre o seu olhar. Apesar de continuar pequena, sem graça e desengonçada.
        Ele apenas ria; ela se sentia feliz.
        De outra feita, ele ordenou:
        - Desejo que você olhe só para mim!
        Ela, ávida por atender aos desejos dele, pensou que não precisava de dois olhos, que com um só ser-lhe-ia, para sempre e facilmente, fiel. Assim, arrancou um olho.
       Ele, ao ver sobre a mesa, fincado num garfo, o olho dela que o olhava, riu até não mais se conter. Além de pequena, sem graça, desengonçada e careca, agora a mulher tinha um olho só. 
        Ele apenas arrumou suas coisas e, sem parar de sorrir, deixou-a para sempre.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Balão prateado

          A menina abriu a janela do carro e, assustada com o sopro de vento quente que recebeu no rosto, acabou soltando o balão prateado em forma de estrela que mantinha junto ao peito. Imediatamente pôs-se a chorar - choro sentido de quem vê algo que ama partir, sensação que se repetiria (pobre menina!) ainda tantas outras vezes em sua vida.
          A mãe, compadecida, tentava acalmar a filha, repartindo o olhar entre o carinho e o trânsito, a doçura e a correria. Mas a pequena não era daquelas que se conformam ou facilmente se deixam dobrar; chorava ainda mais, e mais ainda a mãe se dispunha a tranquilizar a filha, dividindo a atenção entre a pista e sua menina. 
          O balão? Soberano e firme, ascendia aos céus, enchendo o firmamento com sua liberdade prateada. 

domingo, 12 de janeiro de 2014

Chicles

          Sonhei esta noite que mascava chicletes. Vários deles. Tantos que era difícil abrir e fechar a boca. Era uma massa grossa e dura, mas dulcíssima, que se multiplicava magicamente em minha boca e me forçava a mastigar, mastigar e mastigar. No sonho, eu fechava os olhos para que aquele sacrifício fosse amenizado e então percebia que tamanho esforço era acompanhado de um profundo prazer. Profundo e doce prazer. Era bom mastigar aquela massa gostosa e sentir, sem nojo algum, gotículas provenientes daquela masca a me saltar da boca e lambuzar timidamente o rosto, o pescoço, as mãos... Meus pelos se eriçavam pelo corpo, a massa sendo amaciada em minha boca, saliva doce me envolvendo a pele.
          A doçura e o prazer se misturaram tanto que me dei conta de que sentia medo. Medo de ser envolvida por aquela massa de chicletes que, a despeito da mastigação, pouco amaciava. Imaginei o horror que seria se eu fizesse uma bola, imensa bola que certamente me engoliria.
Abri os olhos, em sobressalto, acordando daquele sonho-pesadelo. Percebi que tinha babado e limpei a baba na fronha do travesseiro. Peguei o celular na mesinha de cabeceira e digitei “significado de sonhar com chiclete”.
          Situação que tem sido adiada, mas precisa ser resolvida. Momento difícil do qual se deseja ver livre. Indício de indecisão, postergação. Ausência de capacidade de se expressar oralmente de forma correta. Fraqueza, vulnerabilidade, incapacidade. Não se deve confiar em novas amizades. Melhor jogar na vaca. Ou se livrar dos problemas.
          Desejei a bola de chiclete que me engolisse. Tornei a fechar os olhos, e ela foi surgindo, primeiro eu a fazia, depois ela se fazia em torno de mim. Crescia ao ponto de me envolver. Agora era eu dentro de uma imensa bola de chicles, com cheirinho de tutti frutti e sabor de quero mais. Lugar de silêncio e paz. Respiro lentamente, útero cor de rosa, respiro lentamente e me ponho a sorrir. Aqui é belo e leve. E me faz deletar a pesquisa do Google, o amargo do ser, a vida real.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Boas Festas, com amor!

Acordou disposta a preparar uma linda Ceia de Natal para a sua família. Trocou a água do bacalhau que dessalgava desde a tarde anterior, descascou as batatas e as colocou para cozinhar, temperou um grande frango, já que seus filhos não apreciavam o sabor do tradicional peru de Natal. Checou se todas as bebidas estavam na geladeira e só então começou a organizar o café da manhã daquele 24 de dezembro. A mesa estava linda: uma prévia da que seria arrumada à noitinha. Acordou o esposo com beijos doces, acordou as crianças com doces beijos. E após uma rápida higiene matinal, foram todos para o café da manhã.
Então, toda a cena congelou. De repente ela se via movendo-se e falando sozinha, enquanto sua família permanecia inerte: o esposo com a torrada na mão e a mão no ar, próxima da boca, que estava aberta; João com um pedaço de pão afogado na boca, em meio a um grande sorriso, tão grande que forçou os olhos a se fecharem; Pedrinho de cabeça baixa, a olhar para o mingau, como se ainda em dúvida se devia ou não comê-lo, a mão direita em posição de quem coça a cabeça. Após o susto inicial e algumas tentativas que a assegurassem de que tudo estava, realmente, parado (sentiu-se brincando de estátua com seus coleguinhas, ainda na infância, e se lembrou de como era boa essa época...), ela não se desesperou. Ao contrário, sentiu-se grata por poder ter aqueles instantes congelados à sua frente. Sentiu-se especial por isso, como se o Criador estivesse entregando a ela um grande presente de Natal: aquela família linda, que às vezes a desesperava, que em outras a aborrecia, mas que sempre a deixava feliz e completa era o seu presente de Natal e naquele momento estava ali, na sua frente, numa fotografia viva que jamais seria apagada de sua mente. Sentiu-se realmente grata aos céus. Tanto que começou a entoar uma canção de Natal.
Pinheirinhos que alegria!
Lá-lá-lá-lá-lá, lá-lá-lá-lá... responderam as crianças em coro...
Sinos tocam noite e dia – puxou o marido em seu mais perfeito tenor...
Lá-lá-lá-lá-lá, lá-lá-lá-lá! Em coro e alegre a família cantou.
Era Natal naquela casa. Na verdade, era Natal todos os dias, ela pensou. E desejaram-se, felizes e seguros por estarem em família, “Boas festas, com amor!”.