segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Harpócrates
Era uma vez um casal triste, que vivia sozinho numa casa grande. A rotina de trabalhos_estudos_vidasocialeintensa sufocava a relação entre os dois. Passavam muito tempo fora de casa, em seus afazeres pessoais e quando retornavam ao lar, ao fim de cada dia, já haviam gastado todas as palavras que podiam. Assim, silenciavam-se um para o outro. Ouvia-se, entre eles, apenas o som da solidão.
Um dia, cansada daquela mudez, a mulher decidiu falar. Era um sábado chuvoso e os dois estavam à mesa, tomando o café da manhã. Ela olhou para o marido e viu que o homem envelhecia. Algumas rugas, o olhar pesado e os cabelos cada vez mais grisalhos lhe diziam isso. Olhou para si e viu que o mesmo acontecia com ela; a trança que lhe caía sobre o ombro direito agrisalhava-se também. Pensou que a velhice seria um bom assunto, mas o que a incomodava mesmo era a falta de palavras entre eles. Pousou a xícara sobre a mesa, abriu a boca.
E nenhuma palavra de lá saiu. Tentava projetar os sons, boca aberta pairando no ar. Silêncio e aflição. Bateu na mesa com as mãos, despertando a atenção e o olhar do marido. O impulso dele foi perguntar o que se passava. Mas nele voz também não havia, embora fizesse esforço para falar. Silêncio e aflição. Silêncio e os dois. Silêncio.  
Foi nesse silêncio que perceberam o tanto de tempo que havia se passado, taciturnamente, entre eles, para eles. Foi nesse silêncio que notaram que as palavras não existiriam mais, por falta de costume ou quem sabe capricho ou castigo de Harpócrates. Foi nesse silêncio desesperado que se olharam com o carinho há muito esquecido. Levantaram-se, abraçaram-se com o furor da saudade, beijaram-se ali e também choraram. Tudo pouco harmonizado, corpos enferrujados de carinho pela distância. Esse silêncio, com seus hiatos e vazios, foi envolvendo aqueles dois que, de repente, se lembraram de como era boa a presença do outro, de como valia a pena terem ficado juntos, de quanto ainda podiam ser felizes. Lembraram-se de que ainda se amavam, de que queriam ficar lado a lado e de que isso era mais importante do que trabalhos_estudos_vidasocialeintensa. Ao se afastarem daqueles muitos abraços e beijos, olharam-se e, finalmente, ambos se disseram amo você.

Do alto dos céus, sentado numa flor de lótus, Harpócrates, o deus-menino, retirara a mão da boca - não precisava mais pedir silêncio. Apenas sorria.

2 comentários:

  1. Oi Simone! Que texto maravilhoso! Parabéns pelo ótimo trabalho que tem feito.
    Beijos e saudades!
    Adriane.

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    1. Oi!!! Obrigada por passar aqui e comentar. Muitas saudades de vcs. Beijo!

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