sexta-feira, 30 de maio de 2014




Um
       Eram dois, sempre o foram; porém feitos para serem um. Não sabiam disso, no entanto. Então, seguiam como dois, distintos e irreconhecíveis.
      Um dia, numa dessas esquinas que a vida, faceira e inquieta, insiste em colocar à nossa frente, encontraram-se.
       E eis que o mistério da unicidade se concretizou, envolvendo-os numa assustadora percepção que instantaneamente os acometeu: eram incompletos, existentes pela metade, e tudo o que os tornaria plenos estava bem ali, naquele outro incompleto à sua frente, espelho par que o mirava.
        Deram-se as mãos e miraram-se profundamente. Os dois corações ritmados e completos. As duas mentes plenas, finalmente. Respiração e emoção, alegria e pensamento, sorrisos, vida, expectativas, tudo fundido num só. Estavam, enfim, prontos para se tornarem aquilo para o que foram criados: um. Apenas um.

domingo, 25 de maio de 2014




                                                          Desejos
        Sim, amava-o sobre todas as coisas e tinha medo de perdê-lo.
        Um dia, ele pediu:
        - Pode dançar para mim?
        Feliz por aquele pedido que, para ela, significava desejo e aceitação, dançou, ainda que fosse pequena, sem graça e desengonçada.
        Ele apenas ria; ela se sentia feliz.
        Outro dia ele disse:
        - Você seria mais bela sem os cabelos a lhe caírem nos olhos.
       Ela, feliz pela demonstrada preocupação, rapou logo todo fio de cabelo de sua cabeça. Agora, tinha livre o seu olhar. Apesar de continuar pequena, sem graça e desengonçada.
        Ele apenas ria; ela se sentia feliz.
        De outra feita, ele ordenou:
        - Desejo que você olhe só para mim!
        Ela, ávida por atender aos desejos dele, pensou que não precisava de dois olhos, que com um só ser-lhe-ia, para sempre e facilmente, fiel. Assim, arrancou um olho.
       Ele, ao ver sobre a mesa, fincado num garfo, o olho dela que o olhava, riu até não mais se conter. Além de pequena, sem graça, desengonçada e careca, agora a mulher tinha um olho só. 
        Ele apenas arrumou suas coisas e, sem parar de sorrir, deixou-a para sempre.