terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Boas Festas, com amor!

Acordou disposta a preparar uma linda Ceia de Natal para a sua família. Trocou a água do bacalhau que dessalgava desde a tarde anterior, descascou as batatas e as colocou para cozinhar, temperou um grande frango, já que seus filhos não apreciavam o sabor do tradicional peru de Natal. Checou se todas as bebidas estavam na geladeira e só então começou a organizar o café da manhã daquele 24 de dezembro. A mesa estava linda: uma prévia da que seria arrumada à noitinha. Acordou o esposo com beijos doces, acordou as crianças com doces beijos. E após uma rápida higiene matinal, foram todos para o café da manhã.
Então, toda a cena congelou. De repente ela se via movendo-se e falando sozinha, enquanto sua família permanecia inerte: o esposo com a torrada na mão e a mão no ar, próxima da boca, que estava aberta; João com um pedaço de pão afogado na boca, em meio a um grande sorriso, tão grande que forçou os olhos a se fecharem; Pedrinho de cabeça baixa, a olhar para o mingau, como se ainda em dúvida se devia ou não comê-lo, a mão direita em posição de quem coça a cabeça. Após o susto inicial e algumas tentativas que a assegurassem de que tudo estava, realmente, parado (sentiu-se brincando de estátua com seus coleguinhas, ainda na infância, e se lembrou de como era boa essa época...), ela não se desesperou. Ao contrário, sentiu-se grata por poder ter aqueles instantes congelados à sua frente. Sentiu-se especial por isso, como se o Criador estivesse entregando a ela um grande presente de Natal: aquela família linda, que às vezes a desesperava, que em outras a aborrecia, mas que sempre a deixava feliz e completa era o seu presente de Natal e naquele momento estava ali, na sua frente, numa fotografia viva que jamais seria apagada de sua mente. Sentiu-se realmente grata aos céus. Tanto que começou a entoar uma canção de Natal.
Pinheirinhos que alegria!
Lá-lá-lá-lá-lá, lá-lá-lá-lá... responderam as crianças em coro...
Sinos tocam noite e dia – puxou o marido em seu mais perfeito tenor...
Lá-lá-lá-lá-lá, lá-lá-lá-lá! Em coro e alegre a família cantou.
Era Natal naquela casa. Na verdade, era Natal todos os dias, ela pensou. E desejaram-se, felizes e seguros por estarem em família, “Boas festas, com amor!”.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O encontro
E o avião, pau-sa-da-men-te, pousava. Tudo parecia lento demais, cenas se construindo q-u-a-d-r-o-a-q-u-a-d-r-o, as alvas nuvens cedendo espaço a casinhas minúsculas que, pou-co-a-pou-co se avolumam.  A vida ao redor em slow motion, exceto pelo seu afervorado coração. Aquela viagem, tinha certeza, durara muito mais que o previsto, cada hora, cada minuto, cada segundo, tudo lento demais e ele aflito, aflito, a saudade a lhe estrangular o peito, desejo de estar em casa, no seu lar, pisar seu chão, sentir o abraço gostoso da mãe. A mãe...
No portão de desembarque, a mãe segurava junto ao peito um crucifixo. Rezava para que o voo pousasse logo e de lá saísse, finalmente, após tanto tempo de separação e solitude, seu filho querido. Sua partida ela mesma estimulara, claro, excelente possibilidade de estudos, oportunidade única, imperdível e que ela jamais tivera. Chance de ser alguém, de orgulhar a memória do pai, de gozar a vida com qualidade e ser respeitado com um bom lugar ao sol.  Mas a distância foi eternizada pelas dificuldades financeiras e somente agora, quatro anos depois, se veriam, enfim. A cada minuto, olhava ansiosa e aflita para o painel de desembarque. Voo 3734, sim, previsto, confirmado, aeronave no pátio, desembarque iniciado e sai uma pessoa e sai outra, agora um casal, duas senhoras e nada do seu filho.
O filho aguarda em tortura a visão de sua bagagem naquela esteira sem fim. Até que suas malas despontam, rubras como sempre, fitinhas de Nosso Senhor do Bonfim amarradas nas alças. Recolhe-as. Sabe que é o último momento do ritual que há anos aguarda.  
           A mãe avista o filho. O filho avista a mãe. Entre um e outro olhar, a porta automática se fecha mais uma vez. Acelera os passos, a porta se abre, obediente e respeitosa, e ele, finalmente, para à frente da mãe amada. Que abre os braços e com eles, finalmente, envolve o amado filho, amplexo selado pela pureza da cruz. Lágrimas e batidas de coração e recordações de tatos, cheiros, gosto da lágrima do outro, todo prazer do mundo em matar aquela saudade maior que o mundo e que por tanto tempo sufocou os dois. E se abraçam, e se deixam de abraçar, e se olham nos olhos - e se abraçam outra vez e se alisam os rostos e se dizem palavras de amor e amor e amor.
Agora, de fato, o tempo vai en-cur-tan-do até parecer p-a-r-a-r, enquanto aqueles dois corações vão se a-cal-man-do pela segurança que a presença um do outro transmite. A vida ao redor em fast forward. Exceto por aqueles corações em paz.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Harpócrates
Era uma vez um casal triste, que vivia sozinho numa casa grande. A rotina de trabalhos_estudos_vidasocialeintensa sufocava a relação entre os dois. Passavam muito tempo fora de casa, em seus afazeres pessoais e quando retornavam ao lar, ao fim de cada dia, já haviam gastado todas as palavras que podiam. Assim, silenciavam-se um para o outro. Ouvia-se, entre eles, apenas o som da solidão.
Um dia, cansada daquela mudez, a mulher decidiu falar. Era um sábado chuvoso e os dois estavam à mesa, tomando o café da manhã. Ela olhou para o marido e viu que o homem envelhecia. Algumas rugas, o olhar pesado e os cabelos cada vez mais grisalhos lhe diziam isso. Olhou para si e viu que o mesmo acontecia com ela; a trança que lhe caía sobre o ombro direito agrisalhava-se também. Pensou que a velhice seria um bom assunto, mas o que a incomodava mesmo era a falta de palavras entre eles. Pousou a xícara sobre a mesa, abriu a boca.
E nenhuma palavra de lá saiu. Tentava projetar os sons, boca aberta pairando no ar. Silêncio e aflição. Bateu na mesa com as mãos, despertando a atenção e o olhar do marido. O impulso dele foi perguntar o que se passava. Mas nele voz também não havia, embora fizesse esforço para falar. Silêncio e aflição. Silêncio e os dois. Silêncio.  
Foi nesse silêncio que perceberam o tanto de tempo que havia se passado, taciturnamente, entre eles, para eles. Foi nesse silêncio que notaram que as palavras não existiriam mais, por falta de costume ou quem sabe capricho ou castigo de Harpócrates. Foi nesse silêncio desesperado que se olharam com o carinho há muito esquecido. Levantaram-se, abraçaram-se com o furor da saudade, beijaram-se ali e também choraram. Tudo pouco harmonizado, corpos enferrujados de carinho pela distância. Esse silêncio, com seus hiatos e vazios, foi envolvendo aqueles dois que, de repente, se lembraram de como era boa a presença do outro, de como valia a pena terem ficado juntos, de quanto ainda podiam ser felizes. Lembraram-se de que ainda se amavam, de que queriam ficar lado a lado e de que isso era mais importante do que trabalhos_estudos_vidasocialeintensa. Ao se afastarem daqueles muitos abraços e beijos, olharam-se e, finalmente, ambos se disseram amo você.

Do alto dos céus, sentado numa flor de lótus, Harpócrates, o deus-menino, retirara a mão da boca - não precisava mais pedir silêncio. Apenas sorria.