domingo, 30 de setembro de 2012

Como quem não precisa acordar
No sonho, ela dançava nos braços dele, ao som de uma música ainda não criada, nunca antes cantada nem sabida, mas que os levava, qual folha ao vento. Era como uma cantiga de esponsais, mas completa, perfeita. Seus corpos estavam colados, ela de costas para ele, feliz por sentir os braços dele sobre os seus; ele, sem tirar o sorriso dos lábios, feliz por envolvê-la, poderoso, com braços, mãos, rosto, presença. Bailavam, felizes. Não havia erotismo, apenas uma pueril e singela sensualidade. E o crescente desejo de estar, para sempre, ali, onde a vida derramava-se por todo o corpo e por todos os gestos de ambos. Sua roupa era esvoaçante e mudava de cor à medida que eles giravam, obediente àqueles meneios tão ingenuamente puros. Os pés de ambos estavam desnudos. Roçavam-se cada vez que um passo era trocado, aumentando a sintonia e as batidas daqueles corações. As multicores invadiam o espaço, deixando tudo ainda mais bonito – embora ela não visse isso, pois mantinha os olhos fechados, numa tentativa de controlar aquilo tudo que vivia, sem perder um minuto sequer.
Aquele, aliás, era o momento mais especial de todos os que ela já vivera. Era sonho, sabia. Mas vivia-o tão intensamente que não se lembrava disso. Queria viver aquele sonho, que para ela era a realidade, idealizada e perfeita realidade. De repente, largou-se dele. O instinto reclamava que se mostrasse. Abriu os olhos e saiu rodopiando, nas pontas dos pés, como uma bailarina, a mais bela que já habitou sonho humano. Os cachos de seus cabelos longos enroscavam-se na pele morena, levemente suada após giros voluptuosos. Ele a contemplava, embevecido, até que não resistiu, correu até ela e abraçou-a. Corações em sintonia de ritmos e sentir. Com carinho, ajeitou os cabelos que encobriam seu olhar. Ele, embebido no olhar da moça, tocou-lhe os lábios e a beijou. Embora dormindo, quem a observasse na cama veria que seus pêlos eriçaram e um breve sorriso apareceu em seu rosto. A menina tornava-se a mulher que ama e se derrama nos braços do amado, sem pudor, temor, sem receio do amanhã que virá. A menina experimentava, pela primeira vez, quão bom é estar apaixonada. A menina feliz, abraçada ao amado, bailava. Não sofria por suas incompletudes. Ali, no sonho, era plena.
Ah! se a menina pudesse, viveria aquele sonho para sempre. Sua vida, acordada, não era alegre, não tinha aventura, não conhecia o amor. Era sombria e sem graça, sem ideia nem harmonia. O que possuía de bom, acordada, e que impedia que o tédio e a dor ocupassem todo o seu tempo era um piano antigo. Presente de sua mãe, que também ensinara a menina a tocar. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e por no papel. Por isso era tão triste... Não conseguira ainda, acordada, compor uma canção plenamente. Por isso era tão feliz no sonho... Amava e compunha e dançava e não encontrava limites ou restrições. Não queria acordar nem precisava fazê-lo. Toda a sua existência se resumia naquela dança, cuja música, que embalava o encontro, o amor, o casal, ela mesma compusera. Ali, toda a inspiração. Ali, todo o amor. Ali, ela, ele, todos, plenos. A sensação de uma felicidade que não iria se extinguir. E continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro, bailando, em paz. Como quem vive a felicidade dos que não precisam acordar.

(Inspirado no conto “Cantiga de esponsais”. In: ASSIS, Machado.  Contos: uma antologia. Volume 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.40-44)

Nenhum comentário:

Postar um comentário